AS FAÇANHAS DE HÉRACLES (HERCULES)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

AS FAÇANHAS
DE HÉRACLES
Héracles foi o herói mais popular da Grécia. Prestou grandes serviços aos homens,
livrando-os de monstros que causavam numerosos estragos. Por isso, os gregos, reconhecidos,
não cessaram de celebrar suas façanhas.
Bastava vê-lo para perceber sua força: ele era colossal. Essa estatura fora do comum,
Héracles herdou do pai. De fato, era filho de Zeus com uma mortal, Alcmena. Era,
portanto, um semideus.



O FILHO DE ZEUS

Uma noite, Zeus assumiu o aspecto de Anfitrião, esposo de Alcmena, e se uniu
a ela. Anfitrião tinha ido combater os teleboios, inimigos de Tebas. Um dia antes de o
guerreiro voltar, o deus venceu a desconfiança da jovem mulher narrando-lhe as
façanhas militares do marido dela. Alcmena estava tão feliz em vê-lo que se deixou
enganar facilmente. Uniu-se então a Zeus, de quem concebeu um filho. De manhã, seu
companheiro havia desaparecido. Quando ela viu chegar o verdadeiro Anfitrião,
percebeu que um deus a tinha enganado. Debulhando-se em lágrimas contou tudo ao
marido, que recebeu a notícia com grande contrariedade.

Na noite seguinte, ele se uniu à esposa e lhe deu um segundo filho... Meses
depois, os tebanos ficaram sabendo do nascimento de gêmeos bem diferentes. Um,
Íficles, chorava sem parar diante de qualquer emoção, enquanto o outro, Héracles,
parecia não ter medo de nada. E ele não demorou a dar prova do seu sangue-frio.

Alcmena tinha se deixado enganar pela transformação de Zeus, mas Hera, esposa
dele, não. O menino tinha apenas seis meses, e a deusa já tentava lhe fazer mal para se
vingar da infidelidade do marido.

Uma noite ela pôs duas cobras enormes na cama dos gêmeos. Íficles chorou até mais
não poder, mas o pequeno Héracles agarrou os dois monstros e os apertou com toda a
força. Todos acordaram com o berreiro da criança, e Anfitrião pulou da cama, espada
em punho; sua mulher, trêmula de medo, o seguiu.

O espetáculo que Anfitrião viu o paralisou: ao lado de Íficles em lágrimas, seu irmão,
sem manifestar nenhum temor, segurava os répteis inertes, um em cada mão.
Alcmena conteve um grito e correu para os filhos. O guerreiro se convenceu então de que
Héracles era, de fato, filho de um deus.



A INFÂNCIA DE UM HERÓI

Com o passar dos anos, a força de Héracles se tornou incrível, mas ele nem sempre
conseguia controlá-la. Enquanto seu irmão se mostrava dócil e aplicado, o semideus se
revelava uma criança muito indisciplinada. Os mestres encarregados da sua educação
eram obrigados a lhe chamar a atenção o tempo todo. Lino, que ensinava música ao
garoto, até tentou dar uma surra nele. Mas Héracles reagiu: pegou um banquinho e o
acertou com tanta força no professor que acabou matando-o. Quando o acusaram de
homicídio, ele alegou legítima defesa, escapando assim, por pouco, a uma terrível
punição.

Inquieto com os acessos de cólera daquele filho turbulento, Anfitrião mandou que
ele terminasse sua formação no campo. Os prados e bosques eram mais propícios ao
seu desabrochar. Lá, ele aprendeu a manejar o arco e as armas, e caçava o dia inteiro.
Logo se transformou num arqueiro hábil e num lutador inigualável. Ninguém seria
capaz de desafiá-lo para uma corrida. E ele não hesitava em enfrentar os animais mais
poderosos e mais rápidos.

Um dia, na volta de um de seus longos passeios, Héracles cruzou com uma tropa
de homens que marchavam a passo rápido. Quis saber qual a finalidade daquela marcha.
Mal olhando para ele, os homens responderam com arrogância:

"Somos enviados de Ergino, rei de Orcômeno. Como todo ano, vamos cobrar dos
tebanos o tributo que nos devem. Não nos atrase!"

Para impedir que despojassem sua cidade natal, Héracles lhes deu uma cruel lição.
Com a espada, cortou o nariz e as orelhas de todos, e os enfiou numa corda, que amarrou
no pescoço deles.

Quando Ergino viu o ultraje que lhe haviam infligido, enviou seu exército contra
Tebas. Mas os soldados nem tiveram tempo de chegar perto das muralhas da cidade:
vencido por Héracles, Ergino foi obrigado a pagar aos tebanos um tributo duas vezes
maior do que o que recebia.

Para recompensá-lo dessa intervenção que aliviava seu povo de um pesado ônus,
o rei de Tebas, Creonte, deu-lhe sua filha Mégara em casamento. Com ela, Héracles
teve vários filhos, mas o destino infelizmente não lhe permitiu desfrutar por muito tempo a
felicidade familiar. Parece que sua vida estava fadada a enfrentar provas continuamente, e
ele próprio não era alheio a essa sorte.



UMA VIDA DE PROVAS E DE GLÓRIA

Alguns anos antes, quando Héracles passeava pelas trilhas pedregosas do monte
Citéron, duas mulheres o pararam. Apresentaram-se. Uma se chamava Prazer, a outra,
Virtude. Cada uma lhe propôs um caminho diferente. A primeira lhe ofereceu a facilidade
de uma vida consagrada às distrações. A outra, de aspecto severo, mostrou-lhe um caminho
mais penoso, semeado de provas, mas destinado à glória maior. Preferindo os combates ao
lazer, o herói escolheu seguir a que falara por último. Conheceu então a difícil vida dos
heróis.

Hera, que o perseguia com seu ódio, não deixou de submetê-lo a prova. Um dia,
mandou o demônio da loucura espetá-lo com seu aguilhão. O herói teve um súbito
acesso de raiva e se tornou irreconhecível. Com os olhos revirados e a boca espumando, percorreu
os cômodos do palácio com um arco na mão, procurando os filhos para matá-los.
As crianças, aterrorizadas com os gritos do pai, refugiaram-se perto do altar. Héracles os
descobriu e, sem respeitar o lugar sagrado, transpassou-os com uma flecha. Diante
dessa carnificina horrenda, Atena decidiu intervir. Acertou um golpe no peito de
Héracles, fazendo-o mergulhar num sono profundo. A consternação e a dor tinham
invadido o palácio enlutado.

Ao despertar, o desgraçado pai recuperou a lucidez. Quando ele soube do crime que
cometera, seu rosto se contorceu de desespero, e o grupo de fiéis servidores quase não
conseguiu evitar que o herói cravasse uma espada no próprio coração.

Depois dessa desgraça, não ousou aparecer na frente de Mégara. Resolveu então
deixar o palácio onde, sem querer, derramara sangue. Uma manhã, rumou para Delfos a
fim de interrogar o oráculo. O deus lhe indicaria como expiar seu crime. A Pitonisa
respondeu:

"Você deverá servir ao rei de Tirinto durante doze anos para se purificar dessa
nódoa."

Com essa resposta, que o obrigava a ser escravo de seu primo Euristeu, Héracles
tomou a estrada do Peloponeso. Iria passar a vida nas estradas e incessantemente enfrentar
novas provas.

Euristeu até que gostou de ter um herói tão valoroso a seu serviço. Héracles
chegava em boa hora. Idéias é que não faltavam ao soberano para pô-lo a prova: mandouo
fazer doze trabalhos.



CONTRA OS MONSTROS DA VIZINHANÇA
O LEÃO DE NEMÉIA, A HIDRA DE LERNA,
O JAVALI DE ERIMANTO

Para começar, o rei o mandou à Neméia, uma região vizinha de Tirinto.

Havia ali, dizia-se, um leão sanguinário que devastava o lugar, massacrando os
homens e dizimando os rebanhos. Ninguém ousava enfrentá-lo. Quando Héracles se
dirigia para o covil da fera, teve a idéia de se munir de uma nova arma para combatê-la.
Seu primo o prevenira contra a espessura excepcional da pele do bicho: nenhuma arma
podia furá-la. Avistando no caminho um tronco de madeira densa, o herói o usou para fazer
uma maça tão grande e tão larga que só ele era capaz de manejá-la.

Subia uma encosta rochosa quando um terrível rugido ecoou ali perto. O chão
estremeceu, e subitamente um enorme leão surgiu entre os rochedos.

Héracles armou o arco e atirou uma flecha que teria varado uma árvore... Mas, no
couro espesso da fera, a flecha apenas ricocheteou. Quando o leão chegou junto dele, o
herói puxou da espada. A lâmina escorregou como se a pele do bicho fosse uma pedra e
mal o arranhou. Só restava a maça. Héracles quase não teve tempo de agarrá-la com
ambas as mãos para vibrar um golpe formidável no monstro, que pulava de novo em
cima dele. O animal vacilou e voltou para seu covil.

O herói não lhe deu oportunidade para se recuperar. Decidido a matá-lo com as
próprias mãos, penetrou no antro escuro em busca do bicho. Sentiu de repente o hálito
Ha fera muito perto dele. Pulou e lhe prendeu o pescoço com seu braço vigoroso. O leão
se debatia violentamente, mas Héracles não o largava. Um derradeiro sobressalto, um
derradeiro estalo das mandíbulas, depois mais nada. O monstro morrera estrangulado.

Héracles tratou então de arrancar a pele do animal para levá-la como troféu.
Procurava um jeito de cortá-la, quando lhe ocorreu que poderia usar para isso uma das
garras do próprio animal. Com essa ferramenta, conseguiu esfolá-lo. Terminado o trabalho,
cobriu-se com a pele do leão, cujas patas lhe pendiam sobre o peito.

Logo que voltou a Tirinto para anunciar o êxito na primeira prova, foi mandado
para Lerna, não longe dali. Informado de que um bicho horrendo espalhava o pânico nos
arredores, Euristeu pediu a Héracles que o livrasse da fera.

Próximo a um pântano sinistro, a deusa Hera havia criado um monstro de aspecto
repugnante para testar a bravura de Héracles. A criatura tinha corpo de serpente e nove
cabeças aterrorizantes. Cada uma das suas bocas espumosas exalava, entre dentes
enormes, um hálito mortal para quem o respirasse. A hidra — assim se chamava o
monstro — rastejava sorrateiramente entre os caniços e moia o corpo das vítimas com seu
abraço fatídico.

Acompanhado do sobrinho Iolau, Héracles foi de carro para o local onde o horrível
ser costumava atacar. Quando se aproximaram, os dois viram os caniços se agitarem... De
repente, um assobio agudo cortou o ar fétido. Nove cabeças se ergueram acima do
pântano, lançando um olhar feroz para os dois homens. Atravessando as águas lodosas,
o monstro ia direto para cima deles. Héracles pulou fora do carro e mandou o sobrinho
ficar longe.

Enfrentou o bicho, empunhando a espada com o braço esticado para alcançar as
cabeças. Cortou uma, depois outra, e ambas caíram pesadamente perto dele. Mas mal
cortava uma, crescia outra no pescoço sangrento. Ele se perguntava como conseguiria
aniquilar aquele monstro imortal.

Quando começava a se cansar de tanto cortar cabeças, pediu ajuda a Iolau. Seu
sobrinho ateou fogo nas árvores de uma floresta vizinha. Héracles cortava, e em seguida
Iolau aplicava os galhos calcinados nos cortes para cauterizá-los.A carne queimada se
fechava, impedindo o nascimento de outra cabeça. Mas a última, a do meio, era imortal.
Mesmo depois de ser cortada e cair no chão, continuava perigosa. Héracles a enterrou
bem fundo e rolou um rochedo colossal para cima do buraco. Após isso, os dois subiram
no carro e saíram a toda daquele pântano infecto. Só reduziram a velocidade nos
arredores de Tirinto, para entrar na cidade como vencedores.

A valentia de Héracles impressionou Euristeu. No entanto, ele recebeu o herói com
frieza.

"Pois bem, você venceu as duas primeiras provas. Mas isso é só o começo, porque
outros trabalhos mais difíceis o esperam. Não há tempo a perder! Um javali enorme se
refugiou no monte Erimanto. Vá tirá-lo de lá e o traga vivo!"

A caminho, Héracles se perguntava como iria fazer para neutralizar o javali sem
matá-lo. Os aldeões o tinham avisado: as defesas dele eram tão afiadas, que podiam lhe
arrancar o braço com uma só dentada. Não correria o risco de ser estripado se tentasse
dominá-lo como ao leão de Neméia?

Enquanto procurava um modo de surpreendê-lo, descobriu as primeiras pegadas
do bicho à margem de um riacho. Seu peso devia ser considerável, porque os cascos
tinham penetrado profundamente na lama. Observando os arredores, viu outros sinais da
passagem recente do animal. Os troncos das árvores estavam lacerados por suas temíveis
defesas. Atento aos menores indícios, o herói continuou caminhando, até o momento
em que as pegadas cessaram, à beira de um campo coberto de neve. O javali tomara o
cuidado de não se aventurar por ali, temendo não conseguir sair.

Um grunhido surdo se fez ouvir atrás de um rochedo. Com infinitas precauções,
como um caçador de tocaia, o herói contornou a pedra. Escondido debaixo das
samambaias, avistou a alguns metros a massa sombria. Havia encontrado o bicho, mas
este parecia não ter percebido sua presença. Aproveitando o efeito surpresa, Héracles
surgiu das folhagens dando gritos formidáveis e agitando as armas. O javali saiu em
disparada e se precipitou na neve espessa. Alguns metros bastaram para cansá-lo; a
neve logo chegou à altura do seu pescoço, e ele ficou imóvel. Héracles não teve a menor
dificuldade para se aproximar. Amarrou-o, botou-o nos ombros e voltou para Tirinto.

Ao vê-lo chegar, Euristeu, assustado, pulou dentro de um grande vaso, que era
mantido perto do seu trono para que ele se escondesse em caso de perigo. Tinha tanto
medo do animal como do herói, cuja força derrotava os piores monstros. Preferiu então
afastá-lo por algum tempo e o mandou atrás da corça de Cerínia.



PACIÊNCIA E ESPERA...
A CORÇA DE CERÍNIA,
AS AVES DO LAGO ESTÍNFALO,
OS ESTÁBULOS DE AUGIAS

Essa corça possuía duas qualidades particulares. Seus chifres eram de ouro, e ela se
movia com tal rapidez que escapava facilmente aos perseguidores. A deusa Ártemis já
quisera capturá-la, mas não conseguira, porque ela não parava de correr. Héracles, é
claro, tinha que levá-la viva para o rei. Depois de ter revelado sua bravura e força, iria dar
prova da sua paciência.

A caçada durou um ano inteiro. Ele enfrentou as borrascas do outono nas
planícies ventosas, percorreu as encostas cobertas de neve das colinas da Arcádia,
respirou o aroma dos lilases nos vales. Continuava perseguindo a corça quando o calor
do verão a forçou a reduzir a velocidade. Aproveitando o frescor de um bosque, ela
parou para descansar. O herói infatigável se aproximou então em silêncio e a envolveu
com uma rede, capturando-a. Com a preciosa carga nos ombros, voltou mais calmamente
para Tirinto.

Seu quinto trabalho também lhe requereu mais astúcia do que coragem e força.

Euristeu o informou da presença de milhares de aves perto do lago Estínfalo. Elas
tinham encontrado refúgio num bosque e se multiplicaram tão depressa que nenhum
caçador ousava penetrar entre as árvores. Os galhos vergavam ao peso desses pássaros
agressivos. Eles investiam contra quem se aventurasse nas paragens e não hesitavam em
atacar as plantações, devastando as colheitas, e em molestar o gado. Héracles foi
incumbido de livrar a região de tal flagelo de qualquer forma. Fácil falar! Mas como
usar flechas contra aquelas turbas voadoras? Apesar de ele ser um excelente arqueiro, a
munição terminaria antes das aves.

No caminho que levava ao lago, uma mulher majestosa lhe apareceu. Densos cachos
louros emolduravam seu rosto, no qual brilhava um olhar verde-azulado. A doçura de seus
traços contrastava fortemente com os trajes que usava. O busto estava encerrado numa
couraça de ouro, um capacete com penacho cintilante lhe cobria a cabeça, e ela
empunhava uma comprida lança de madeira escura. Era a deusa guerreira Atena que se
encontrava diante dele.

"Você venceu sozinho todas as outras provas", disse ao herói. "Agora vou ajudá-lo.
Tome este presente fabricado por Hefesto Ele vai permitir que enxote as aves."

Héracles recebeu das mãos da deusa um par de castanholas de bronze, e quando
ergueu os olhos para agradecer, ela já tinha desaparecido.

Prendeu os dedos no cordel de seda que ligava as duas peças do instrumento e bateu
uma contra a outra. Produziu assim um som metálico, que repercutiu longamente. O
eco deixou as aves apavoradas. Quando Héracles chegou perto delas, repetiu a operação.
Ressoou então na floresta um barulho ensurdecedor. As centenas de pássaros se puseram
a voar. Em pânico, rodopiavam no céu subitamente escurecido, e o bater das asas se
misturava a seus gritos desnorteados. Passado um instante, outra vez o silêncio caiu, com a
noite, sobre a floresta deserta. As aves nunca mais voltaram.

Ao saber da partida das aves, a região inteira aclamou Héracles. O invejoso
Euristeu, notando que cada prova só aumentava o prestígio do herói, decidiu submetê-lo
a um trabalho menos glorioso. Afinal de contas, ele era seu servidor. Confiou ao primo a
ingrata tarefa de limpar os estábulos de Augias, rei de uma cidade vizinha.

Augias era um rei negligente e preguiçoso. Seu pai, o próprio deus Sol, deu-lhe de
presente estábulos magníficos, repletos de admiráveis cavalos. Esperava que, com esse
patrimônio, o filho obtivesse uma boa renda. Mas o rei se esquecia de cuidar deles.

Por anos e anos, os excrementos dos animais tinham se acumulado nos corredores,
formando montes enormes que obstruíam as baias e quase chegavam ao teto. Os
estábulos exalavam um mau cheiro que começava a alcançar a vizinhança. As pessoas se
queixavam. Além disso, privada desse adubo precioso, a terra produzia menos, e
miséria espreitava os moradores do lugar.

Héracles se apresentou no palácio e perguntou onde ficavam os estábulos. Quando
anunciou que contava limpá-los num só dia, o rei não parava de rir.

"Seriam necessários cinqüenta homens como você para remover todas aquelas
toneladas de esterco, e uma semana seria pouco, acredite!"

O herói não desanimou e se dirigiu ao local. Não longe dali corria o rio Alfeu. De
pronto, Héracles pôs em prática a idéia que acabava de lhe ocorrer. Abriu uma vala até os
estábulos; por sorte, o terreno era levemente inclinado nessa direção. Interrompeu o
curso natural do rio com pedras enormes e o desviou. Tomando esse novo leito, mais
estreito e em declive, as águas redobraram sua força. Desembocaram impetuosamente nos
corredores dos estábulos, que foram limpos num piscar de olhos. Carregado pela
correnteza, o esterco se espalhou pelos campos e fecundou a terra.

Vendo que Héracles realizava com brio os trabalhos mais humildes, Euristeu
resolveu mandar para longe o primo cuja glória o ofuscava.



ALÉM DOS MARES
O TOURO DE CRETA,
AS ÉGUAS DE DIOMEDES,
O CINTURÃO DE HIPÓLITA

Para a sétima prova, Héracles teve que atravessar o mar e ir à ilha de Creta. O rei
Minos tinha em seus rebanhos um touro magnífico. Poderosos músculos tremiam sob
seu pêlo lustroso, e chifres maciços lhe ornavam a fronte larga. Era raro poder admirar um
animal tão bonito, e Minos se orgulhava muito dele, um presente do próprio Posêidon.
Foi assim que o ganhou: o rei havia prometido sacrificar ao deus tudo o que aparecesse no
mar; Posêidon imediatamente fez surgir das águas esse touro esplêndido, mas Minos,
preferindo ficar com ele, pôs outra vítima no altar; cheio de cólera por ter sido
enganado, o deus se vingou tornando o touro raivoso.

Desde então, nenhum freio e nenhuma cerca podiam contê-lo. Ele errava nos
campos, atacando todos os que encontrava em seu caminho. Aterrorizados, os
camponeses e os aldeões já não ousavam sair de casa, com medo de topar com o touro.
Por isso, quando Héracles veio reclamá-lo, Minos até ficou contente, pois iria se ver livre
daquela ameaça. Mesmo assim, sentiu pena de ver o belo animal ir embora.

"Deixo que você o capture", respondeu ao herói, "mas não vou lhe dar nenhuma
ajuda."

Héracles partiu em busca do touro. Não tardou a descobri-lo. Mal saiu do palácio,
viu o bicho furioso pronto para atacar. Ele cavava ferozmente a terra com a pata e lançava
um olhar faiscante de raiva para o herói. No momento em que o animal avançou contra ele,
Héracles se esquivou, agarrou-o pelos chifres e jogou todo o seu peso no pescoço do
animal. A força do herói obrigou o touro a dobrar os joelhos. Logo suas narinas aspiravam
a poeira. Héracles aproveitou esse momento de fraqueza para amarrar as patas dele.
Depois embarcou para a terra grega com seu prestigioso fardo.

Euristeu quis porque quis admirar o animal. Mandou que o libertassem, apesar da
advertência de Héracles. Mal soltaram suas patas, o touro, com uma cabeçada violenta,
arrancou a corda das mãos do boiadeiro e fugiu para o campo. Sua louca disparada o
levou longe, até as planícies da Ática, de onde Teseu, outro herói, iria expulsá-lo mais tarde.

Héracles não tentou pegá-lo: já estava preparando outra expedição, que o levaria à
Trácia, governada pelo rei Diomedes. Euristeu não lhe disse nada sobre os perigos que
correria. Mas alguns viajantes logo o preveniram contra eles.

Esse rei possuía quatro éguas bastante especiais. Em vez de pastar o capim espesso
dos prados, os temíveis animais se alimentavam de carne humana. O rei lhes dava para comer
todos os estrangeiros que desembarcavam em seu litoral. Antes, fingia acolher os
visitantes calorosamente, mas, à noite, quando eles caíam no sono, amarrava-os e os
levava à estrebaria.

Ao chegar, Héracles foi recebido com muita cordialidade, porém não esperou o
meio da noite para sair da cama. Ficou atrás da porta e surpreendeu seu anfitrião bem na
hora em que ele entrou no quarto. Sem que tivesse tempo de gritar por socorro, Diomedes
se viu amordaçado e amarrado; assim o herói o levou para as éguas. Elas não
reconheceram o dono e o devoraram com apetite. Depois, satisfeitas, seguiram Héracles
que as embarcou consigo.

Euristeu não quis ficar com aqueles animais tão perigosos em seu palácio e
mandou soltá-los na montanha, onde não demoraram a ser devorados pelas feras.

Héracles nem pôde desfrutar um merecido descanso em Tirinto. Uma longa travessia
o aguardava.

A filha de Euristeu, Admetéia, desejava possuir o cinturão da rainha das amazonas,
Hipólita. Além de ser belíssimo, esse cinturão simbolizava o poder, a força e a autoridade.
Como sua filha não desistia da idéia, o rei mandou Héracles em busca do precioso objeto.

Ele embarcou com vários companheiros para as terras distantes à beira das escarpas
do Cáucaso. As amazonas não aceitavam nenhum homem entre elas. Viviam muito
bem sozinhas e também sozinhas obtinham, caçando, os animais necessários à sua
alimentação. Além disso, eram guerreiras ferozes, e os povos vizinhos não se arriscavam
a penetrar em seu território.

Quando desembarcaram no litoral da região habitada por essas mulheres guerreiras,
os gregos foram recebidos como homens. Ou seja: no mesmo instante, iniciou-se um
violento combate. O valor dos heróis prevaleceu sobre a bravura das amazonas, e
quando Héracles capturou Melanipéia, uma amiga próxima da rainha, o combate cessou.
Eles firmaram uma trégua, ao fim da qual procederam a uma troca. Melanipéia foi
libertada, e Hipólita entregou o cinturão a Héracles. A vida de sua amiga valia muito
mais que o mais lindo cinturão.

Héracles acabava de explorar as rotas longínquas do Oriente. Logo atravessaria os
limites do mundo conhecido, tomando a direção oposta, o rumo do distante Ocidente.



ATÉO FIM DO MUNDO
OS BOIS DE GERIÃO, CÉRBERO,
OS POMOS DE OURO DAS HESPÉRIDES

Nos confins da terra habitada pastavam os numerosos rebanhos de Gerião. Ortro,
um cão feroz e monstruoso, guardava-os. Para chegar a esse lugar, o caminho era longo e
árduo. Héracles escolheu, na ida, o rumo do Sul. Tinha que atravessar o deserto sufocante
da Líbia e depois as passagens revoltas do oceano.

O herói obrigou o Sol a ajudá-lo. Temendo suas flechas poderosas, o astro solar o
recebeu a bordo do carro que costumava levá-lo para o Oriente e aceitou fazer um desvio em
seu trajeto para deixar Héracles à beira do oceano. Lá, o herói precisou ameaçar também
o deus marinho para que a nau não jogasse muito durante a travessia. Apesar das
dificuldades, o caminho era apenas a primeira parte da prova.

Ao chegar, Héracles teve que enfrentar o terrível guardião Ortro. Com um golpe
de maça, livrou-se do cão e do pastor, e depois se apoderou dos rebanhos. Antes de
partir, erigiu duas colunas para marcar o limite do mundo explorado: uma assinalava
a extremidade do continente europeu; a outra, a do continente africano.

Com o rebanho, Héracles percorreu os planaltos e planícies da Espanha, e
atravessou o Sul da Gália. Teve que lutar contra bandidos que quiseram roubar seu
gado. Na volta, desceu a península italiana, antes de embarcar para a Grécia. Invejosa
do sucesso dele, Hera atrapalhou o fim da expedição: mal o herói desembarcou nas
praias gregas, ela lançou contra o gado enxames de mutucas. Picados, os bichos ficaram
enlouquecidos e se dispersaram. Héracles só encontrou alguns dos animais, que levou
para Tirinto. Apesar de serem poucos, Euristeu gostou de tê-los entre seus rebanhos.

As duas últimas provas tornaram o herói conhecido nos limites do mundo humano.
Ele as venceu para descer ao Inferno e trazer de lá Cérbero, o guardião do Reino das
Sombras.

Sem a ajuda de Hermes, nunca teria achado a entrada. Caminhou dias e noites. À beira
do oceano, abria-se a gruta infernal, onde havia uma grande escadaria.

A descida durou muito tempo. Hermes teve que acompanhá-lo até as margens
do Estige para convencer Caronte a embarcar o herói. O barqueiro tinha ordens
expressas: somente os mortos podiam entrar em sua barca. Mas Héracles não era um
homem como os outros. A prova é que iria voltar daquele mundo de onde ninguém volta.
No entanto, antes de retornar, ele quis ir até o palácio de Hades e Perséfone. No caminho,
cruzou com as sombras dos mortos, que lhe contavam o triste fim que tiveram.

Acabou encontrando os dois soberanos desse reino subterrâneo. Dirigiu-lhes a palavra
com todo o respeito:

"Augusto Senhor das Sombras, e tu, sua esposa real, posso levar comigo o feroz
Cérbero para satisfazer ao pedido de meu amo Euristeu?"

"Você é muito corajoso, Héracles", respondeu Hades sorrindo. "Leve Cérbero se
for capaz, mas não utilize armas."

O Senhor do Inferno estava convencido de que o herói fracassaria se não usasse armas.

Munido apenas da pele de leão e de sua couraça, Héracles se encaminhou para a saída.
Ao vê-lo, o cão se pôs a rosnar ameaçadoramente. Todo mundo podia entrar, mas sair
era outra coisa. Entretanto, Héracles conseguiu se posicionar perto do ombro do animal,
evitando assim os dentes dele. Passou então o braço em torno do seu pescoço, a fim de
neutralizar de uma só vez as três cabeças que latiam. Apesar dos ferimentos que o cão
lhe infligia com a ponta em dardo da cauda, o herói resistia. Atena untara seu corpo
com um bálsamo que o tornava insensível ao veneno. Não demorou para que Cérbero
fosse totalmente dominado. Héracles o amarrou com uma corda e o levou consigo para a
terra, até Tirinto.

Ao ver o monstro, Euristeu correu para se esconder e mandou o primo tirá-lo do
palácio. Héracles, sem saber o que fazer com o bicho, foi devolvê-lo aos donos.

Para pôr fim a esses doze anos de serviço, o rei de Tirinto exigiu que o herói fosse
buscar um bem pertencente à própria deusa Hera: os pomos de ouro com que Gaia,
deusa da Terra, a presenteara por ocasião de seu casamento. A esposa de Zeus os havia
posto sob a vigilância de um dragão imortal de cem cabeças, no jardim das Hespérides.
Héracles aceitou o desafio, mas não sabia onde ficava esse jardim. Acabaram lhe
informando que ele devia ir à terra dos hiperbóreos.

O herói seguiu ladeando o Cáucaso, onde, no cume de uma das montanhas, Prometeu
estava acorrentado desde que Zeus o punira por ter roubado o fogo. Ele afirmou
que aconselharia Héracles se este o libertasse. O herói logo escalou a montanha e
quebrou as correntes do Titã. Aliviado, Prometeu lhe recomendou que, em vez de ir
pessoalmente colher os pomos, confiasse a tarefa ao gigante Atlas. Héracles lhe
agradeceu e continuou seu caminho.

Chegando perto do jardim procurado, encontrou Atlas, com a abóbada celeste nas
costas. Propôs substituí-lo por alguns instantes se Atlas fosse apanhar para ele três
pomos de ouro. O gigante aceitou e, pouco depois, voltou com os frutos. Só que gostou
daqueles momentos de liberdade e não parecia estar com nenhuma pressa de retomar o
seu lugar. Ofereceu-se, inclusive, para ir ele mesmo entregar os pomos a Euristeu.
Suspeitando de uma artimanha e temendo que Atlas nunca mais regressasse, Héracles
fingiu concordar:

"Mas, antes de partir, pode me substituir um instantinho para que eu ponha uma
almofada nas costas?"

Sem desconfiar, Atlas fez o que o herói pediu. Então Héracles pegou os pomos
que o outro deixara no chão e fugiu dando adeus ao gigante.

Ao depositar os frutos nas mãos de Euristeu, Héracles tinha realizado sua última
prova. Agora estava livre. Partiu em busca de novas aventuras, cruzou com outros
monstros, enfrentou mais bandidos e até entrou em conflito com as divindades. Mas
seriam necessários dias e dias para contar todas as suas façanhas.

Seu fim foi particularmente dramático. Uma mulher é que o provocou, sem o
saber, pobre infeliz.

Ela se chamava Dejanira e morava sozinha em Cálidon, desde a morte do irmão,
Meléagro. Héracles havia encontrado a sombra desse valoroso herói ao descer ao
Inferno para buscar Cérbero. O relato da morte de Meléagro o comovera, arrancandolhe
lágrimas, e ele lhe prometera casar com sua irmã.

Acompanhado da doce esposa, Héracles voltava para Tirinto quando um rio os
impediu de prosseguir. Sozinho, o herói o atravessaria sem dificuldade, mas teve que procurar
uma passagem para a companheira. Nesse momento o centauro Nesso apareceu e
lhes ofereceu ajuda. Héracles transporia o rio a nado, e ele levaria Dejanira no dorso. O
casal aceitou com alegria e lhe agradeceu. Mas, bem no meio do rio, Nesso se aproveitou
da situação e tentou violentar aquela jovem indefesa.

Os gritos da esposa chamaram a atenção de Héracles, que acertou no centauro uma
flecha envenenada com o sangue da hidra de Lerna. Mortalmente ferido, Nesso fingiu
arrependimento:

"Perdoe-me", disse a Dejanira ao expirar, "e em troca do seu perdão eu lhe darei
um conselho. Pegue um pouco do meu sangue e o conserve preciosamente: vai servir de
filtro do amor para animar o ardor do seu marido. Quando ele parecer menos amoroso,
ofereça-lhe uma roupa que você terá embebido do meu sangue, e seu esposo voltará a ser o
amante dos primeiros dias."

Dejanira nem desconfiou que esse presente pudesse conter veneno.

Anos mais tarde, ela precisou testar a eficácia do remédio. Contavam que
Héracles tinha se apaixonado pela princesa Íole. Dejanira logo lhe enviou uma túnica
banhada no sangue de Nesso. O herói gostou do presente e, apenas o vestiu, ativou o
veneno contido no filtro. O tecido se inflamou em contato com a pele dele, e um fogo
ardente começou a lhe consumir a carne. O sofrimento era intolerável. Héracles
tentou arrancar a roupa. Em vão: ela aderira à sua pele, que, assim, também se
descolava. Ninguém poderia ajudá-lo. Somente a morte a livraria de tal suplício.

O herói ainda encontrou forças para juntar lenha. A cada esforço ele soltava um
gemido. Deixou-se cair no monte de lenha que empilhara e, com um fio de voz, mandou
seus serviçais atearem fogo em tudo. Os coitados estavam divididos entre o desejo de
interromper os sofrimentos do amo e a pena por vê-lo desaparecer. Como ele gritava
pedindo que acabassem com aquilo, obedeceram à sua ordem. Uma chama alta lambeu
a lenha seca. Sob o efeito do veneno, o fogo crepitava violentamente. A fogueira se
consumiu, e o corpo desapareceu no braseiro.

Os deuses que assistiram a esse triste fim quiseram recompensar a coragem
excepcional do herói. Assim, receberam-no a seu lado no Olimpo e fizeram dele uma
divindade. O homem havia morrido, mas o deus vivia nos céus.